Epopéia de Gilgamesh, a origem do Gênesis
A originalidade nunca foi
característica das grandes religiões atuais. Elas estão sempre se adaptando
naquilo que é politicamente conveniente para elas em determinadas épocas, ou até
mesmo se misturando umas com as outras, resultando numa verdadeira salada de crenças. Como todo fenômeno irracional
e emergente, o resultado é essa grande confusão de religiões e práticas rituais,
muitas delas divergentes, nos dias de hoje. Até aí tudo bem, o problema é quando
as pessoas são doutrinadas para pensar que tais crenças existiram desde sempre,
ou que elas são "únicas" e "originais", ganhando com isso um sentido de
importância "sobrenatural" ou "divino". Por isso que quase ninguém ouviu falar
da Epopéia de Gilgamesh, a mais antiga obra literária da humanidade, que deu
origem à inúmeros textos religiosos ou os influenciou, incluindo o Gênesis
bíblico. E quase ninguém sabe que os pontos em comum entre estas crenças não são
apenas coincidência, mas tem na verdade uma origem comum.
Até meados do século XIX, tudo o
que se sabia sobre a antiga Mesopotâmia - hoje Iraque - e os grandes impérios e
civilizações que ali existiram, era o que estava escrito na Bíblia, que por
sinal dá informações escassas e pouco reveladoras a respeito, já que ela tem
mais interesse na história - contada de forma mais ou menos mitológica - do povo
hebreu. Foi quando arqueólogos encontraram a biblioteca de Assurbanipal,
imperador assírio que viveu há mais de 2600 anos, na antiga cidade de Nínive. Lá
haviam tábuas de argila contendo escrita com sinais que mais tarde foi batizada
de cuneiforme. Com isso começou uma "corrida do ouro" para encontrar evidências
arqueológicas dos relatos bíblicos na região, revelando nas escavações, reínas
de cidades-estado como Uruk, Ur e Nipur, que junto com outras foram o berço da
nossa civilização atual.
As tábuas encontradas na
biblioteca em Nínive foram traduzidas pela primeira vez em 1872 pelo arqueólogo
britânico George Smith, revelando ao mundo um trecho da Epopéia de Gilgamesh; o
relato de um Dilúvio global, muito anterior ao de Noé e provavelmente "plagiado"
por este, por ter várias similaridades. Esta descoberta abalou toda a comunidade
científica e religiosa do século XIX, laicizando e modificando completamente o
método de pesquisa dos arqueólogos e historiadores, e, principalmente, abrindo
espaço para a honestidade e falseabilidade científica, pelo questionamento que
colocaria à prova a veracidade histórica dos textos bíblicos. Particularmente
nos últimos quarenta anos, tem sido realizadas muitas discussões acerca do que é
mitológico e histórico nos relatos do Pentateuco, os 5 primeiros livros da
Bíblia que tratam da criação do mundo e a origem do Homem e seus primeiros
passos na Terra, na origem do povo israelita e das próprias escrituras sagradas
do Cristianismo, tudo graças às descobertas feitas no século XIX.
Tábua número IX da Epopéia de Gilgamesh, contendo a história do Dilúvio, em língua acádia |
A Epopéia de Gilgamesh é um
grande compilado de poemas que teria sido escrito há mais de 4000 anos. Aliás,
ela talvez seja derivada de tradições ainda mais antigas, principalmente a
narração do Dilúvio, que teria se baseado no antigo épico acádio
Atrahasis, que por sinal teria se originado de tradições de tempos
pré-históricos. Gilgamesh, foi um rei semi-lendário e herói, filho de um
"demônio" ou "fantasma", que governou o povo sumério por 126 anos, e pelos seus
feitos foi considerado o maior antecessor dos reis sumérios e depois venerado
como um deus pelos antigos sumérios e acádios. Historicamente, teria sido um
monarca do fim do segundo período dinástico da Suméria, há 4500
anos.
A Epopéia narra em grande parte a
relação de Gilgamesh com seu amigo Enkidu, um homem selvagem criado pelos deuses
como um equivalente seu, para evitar que Gilgamesh oprimisse o povo da cidade de
Uruk, que governava. Enkidu luta com Gilgamesh e o derrota, e este, admirado,
torna-se seu aliado e companheiro de aventuras. Juntos realizam diversas
missões, que descontentam os deuses, derrotando monstros enviados por estes,
como Humbaba. A parte final do épico é quando Enkidu morre, e transtornado,
Gilgamesh vai em busca da imortalidade, até que Utinapishtim, o herói imortal do
dilúvio (adaptado pelo Noé bíblico), lhe diz que jamais a encontraria. No
entanto, lhe transmite vários ensinamentos sobre cultos perdidos, que Gilgamesh
traz de volta para Uruk. Gilgamesh também foi notório pelas diversas construções
que levantou na cidade.
O mais curioso, porém, na
narrativa do poema, são as semelhanças mitológicas dos mitos da criação e do
dilúvio com os da Bíblia. Enkidu é criado inocente, sem a malícia do Homem
(exatamente como Adão e Eva), e pastava e vivia com os animais da floresta.
Gilgamesh envia uma prostituta do templo da deusa Ishtar para seduzí-lo (igual a
serpente faz com Eva, ao oferecer-lhe o fruto proibido) e trazê-lo para Uruk,
com sucesso. Enkidu perdeu sua inocência e seu poder selvagem, tornando-se
conhecedor do bem e do mal. Nesta comparação com a tentação do Eden, podemos
identificar as idéias ao invés dos fatos. A prostituta sagrada, condenada também
em outros livros da Bíblia, pode ser encarada como o fruto proibido, a serpente
e a própria Eva, que tem o poder de seduzir o homem e tirar sua inocência com
falsas promessas.
Representação de Gilgamesh |
Quando Gilgamesh encontra
Utinapishtim, este narra-lhe como conquistou a imortalidade; Enlil, deus da
terra e do mar, desgostoso da humanidade, decide destruí-la com um dilúvio. No
entanto, Ea, deus da água doce e da sabedoria, avisa Utinapishtim das intenções
de Enlil e lhe instrui a construir uma ARCA onde ele colocaria toda sua família,
artesãos e animais que existiam, que se salvariam do dilúvio. Enlil envia uma
grande tempestade que inunda toda a Terra por seis dias e seis noites, e matou
todas as pessoas que não estavam na Arca. Ao fim da chuva, Utinapishtim soltou
uma pomba, depois uma andorinha, depois um corvo, para ver se eles achavam terra
seca e firme após a inundação. Já em terra firme, ele faz sacrifícios a Ea, que
lhe salvara do dilúvio. Não precisa nem falar das semelhanças dessa história com
a do dilúvio bíblico... Furioso com Ea, Enlil decide transformar Utinapishtim em
um imortal, para que a maldição de que nenhum mortal sobreviveria ao dilúvio que
ele mandou se cumpra.
Utinapishtim diz a Gilgamesh que
ele nunca poderá se tornar imortal. Frustrado, ele prepara-se para voltar a
Uruk, mas no caminho a esposa de Utinapishtim vai ao encontro dele e diz que há
uma planta mágica no fundo do mar, que, se ele comer, o tornará imortal (mais
uma vez tem uma mulher/Eva/serpente/prostituta seduzindo um homem na
história...). Arriscando a própria vida, o herói consegue obter a planta, mas
por compaixão decide repartí-la com o povo de Uruk. No caminho para casa, uma
serpente (outra !!!) marinha rouba-lhe a planta, fazendo-o perder para sempre o
segredo da imortalidade, o que foi uma baita sacanagem com o coitado do
herói.
No livro de Gênesis não há
semelhanças apenas com a Epopéia de Gilgamesh, mas ainda com o Mito de
Dilmum, também da Suméria, onde o deus Enki e a deusa Nintu habitavam
sozinhos num mundo de delícias, bem semelhante ao Jardim do Éden. Portanto,
amiguinho, se você é religioso, principalmente se for cristão, nunca critique
outras religiões ou diga "dessa fonte nunca beberei", pois boa parte daquilo que você acredita certamente é chupação,
ctrl + c e ctrl + v de crenças pagãs e civilizações muito mais antigas. Pois,
como disse Fernand Braudel, “O passado das civilizações nada mais é que a
história dos empréstimos que elas fizeram umas às outras ao longo dos séculos
...”
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